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Esgoto que vale ouro

No coração do semiárido nordestino, onde o racionamento de água é uma ameaça recorrente, um projeto está mudando a lógica da escassez: ouro sendo minerado com esgoto tratado. A ideia, que soa provocativa, já é realidade em Currais Novos, município do Rio Grande do Norte com cerca de 43 mil habitantes que enfrenta restrição hídrica crônica. A iniciativa une a Aura Minerals, multinacional da mineração com operações no Brasil, México e Honduras, à Caern (Companhia de Águas e Esgotos do Rio Grande do Norte) e à prefeitura de Currais Novos. Juntas, as três costuraram uma parceria tripartite que transformou efluente urbano em ativo estratégico para a extração de ouro.

O projeto surgiu para suprir a demanda por água da nova unidade de extração de ouro da Aura Minerals, o projeto Borborema, que entrou em operação em março e prevê adicionar 83 mil onças de ouro por ano à produção global da companhia. Mas, operar no semiárido exigia uma resposta à pergunta: de onde virá a água? A resposta está em captar e tratar o esgoto da cidade para uso industrial na planta de beneficiamento. A elevatória instalada tem capacidade para bombear 80 metros cúbicos por hora, volume próximo ao de uma piscina olímpica.

Ao todo, 65% do esgoto coletado na cidade já passa por tratamento com fins industriais. A água que atende a operação da Aura é da região central do município, ou seja, não inclui os afluentes da zona rural, região onde moram 3 mil pessoas. Na prática, o sistema funciona em circuito fechado: 90% da água usada é recirculada internamente pela mineradora, e os 10% restantes são provenientes do efluente sanitário tratado.

A água não é própria para consumo humano ou outros fins nobres, mas é adequada para a mineração, que exige certo nível de potabilidade para os processos mecânicos, físicos e químicos. A empresa também precisará fazer aportes anuais para cobrir custos com químicos, energia e operação. “O montante total investido inclui R$ 48,4 milhões para tratamento e instalação de uma adutora. Ao longo dos anos, não há grandes problemas de escassez de água, mas, a cada oito ou dez anos, ocorrem eventos mais intensos que podem impactar a produção”, disse Rodrigo Barbosa, CEO da Aura.

A adutora é uma grande tubulação que transporta água tratada de uma estação de tratamento para reservatórios de distribuição ou diretamente para áreas de consumo. De fato, em 2024, a cidade ficou à beira de um racionamento. O executivo afirma que o tratamento e reuso do esgoto do município não é uma condicionante do projeto Borborema, ou seja, não faz parte das obrigações que a empresa tem que cumprir, já que poderia apenas usar a água fornecida pela Caern, sem a exigência do tratamento.

De acordo com Thiago de Souza Índio do Brasil, diretor de operação e manutenção da Caern, o contrato não é uma parceria público-privada (PPP) clássica, mas uma costura administrativa em que o reflexo do saneamento já é sentido nas contas públicas -- viabilizar o projeto apenas com recursos públicos exigiria elevar a tarifa cobrada da população, o que seria inviável neste momento. Além disso, o município também economiza cerca de R$ 10 mil com energia, que é bancada pela mineradora.

Além disso, Souza observa que o projeto transforma um passivo ambiental em um ativo econômico. “Até antes, este efluente tratado não tinha utilização e agora ele passa a ser um novo produto que consideramos a peso de ouro”, diz Souza.

O caminho para universalização do saneamento da cidade ainda é longo e exige mais esforços das autoridades locais. Dados do Instituto Água e Saneamento, com base no Censo de 2022 do IBGE, apontam que o esgoto de quase 13 mil habitantes do município de Currais Novos ainda não é coletado e mais de 11 mil pessoas não têm acesso à água. Porém, parcerias assim demonstram que é possível avançar com soluções sustentáveis, mesmo em contextos de escassez e limitações orçamentárias.

A região do Seridó, onde está Currais Novos, ainda aguarda o fim das obras do Projeto de Integração do Rio São Francisco, previstas para 2026, o que deve aumentar o volume de esgoto na região. O esgoto já está chegando na operação da Aura, embora com algumas intermitências, já que a planta ainda está em fase de “ramp up” — período entre o início da operação e o atingimento da produção comercial.

Segundo Souza, esse modelo de parceria já é replicável. Além da Aura, a cimenteira Elo também utiliza o esgoto tratado de Currais Novos em sua operação. Da mesma maneira, a Aura tem sido procurada por outros municípios oferecendo água de reúso em parceria semelhante, o que pode abrir caminho para novos arranjos em regiões áridas.

Do Valor Econômico


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