A morte trágica do jovem Gerson de Melo Machado, o "Vaqueirinho”, que invadiu a jaula de uma leoa no Parque Zoobotânico Arruda Câmara (Bica), em João Pessoa, encerra um capítulo triste de uma vida ainda mais triste. O desfecho fatal nos obriga a revisitar a antiga história de "Daniel na Cova dos Leões" não como um paralelo de esperança, mas como um espelho partido que reflete a dura realidade do nosso tempo.
Na narrativa bíblica, o profeta Daniel é lançado aos leões pelo rei Dario por causa da sua fé e integridade. A imagem que atravessou milênios é a da serenidade em meio às feras: Deus envia um anjo, a boca dos leões se fecha, e a vida triunfa sobre a sentença de morte. É o arquétipo da proteção divina contra a injustiça humana.
Em João Pessoa, o roteiro sagrado foi dolorosamente subvertido. O rapaz, cuja mente possivelmente vagava por labirintos que a razão desconhece, entrou na "cova" voluntariamente. Diferente do profeta, ele não portava a proteção do milagre, mas a vulnerabilidade de um ser humano frágil diante do instinto predatório absoluto.
Não houve anjo para fechar a boca da leoa. O que assistimos foi a imposição implacável da natureza. O animal, ao defender seu território ou reagir a uma invasão inexplicável, apenas foi o que nasceu para ser: uma fera.
O episódio nos força a encarar o abismo que separa a mística da realidade. O Daniel bíblico saiu da cova para provar o poder de Deus; o "Vaqueirinho" da Paraíba, um menino pobre, de vida destrinchada, cuja história não encontrou anjos, apenas o rugido implacável do abandono, sucumbiu na jaula, talvez provando o nosso fracasso enquanto sociedade em proteger aqueles que, por desequilíbrio ou desespero, já não conseguem discernir o perigo real da fantasia.
Vaqueirinho viveu na fronteira da exaustão. Era uma vítima da desordem química e biológica de seu ser, mas também da falência humana que o cercava. A vida de um paciente com transtorno mental grave exige uma retaguarda. Mas a família de Vaqueirinho, distante ou esgotada, não pôde ser esse santuário. Onde o amor e o amparo familiar esgotam os recursos, a fragilidade se instala, e o indivíduo é deixado à deriva, sem o cordão umbilical de afeto que a doença não permite manter.
O sistema de saúde mental não conseguiu segurar Vaqueirinho. Ele entrava e saía, como a areia escorrendo pelos dedos. Sua "não adesão" ao tratamento não é um capricho, mas um sintoma da doença, que exige intervenção humanizada e incessante que o sistema, sobrecarregado e subfinanciado, não consegue entregar. A cova de Vaqueirinho era a junção da mente em surto com o registro de "desaparecido" do sistema de saúde.
A forma como ele morreu, na jaula da leoa, filmado por dezenas de celulares, é um grito desesperado que chama a atenção do país para a doença mental.
Foi um fim dramático, terrível, visível.
Mas o sofrimento de Vaqueirinho não era único. Ele é apenas a vítima mais ruidosa de uma tragédia humana silenciosa que assola milhares. Para cada pessoa que se lança a uma jaula, há incontáveis outros que sofrem essa mesma tragédia em silêncio.
São os tantos que, sem apoio familiar, vivendo no mais absoluto abandono, não têm como buscar o tratamento.
São os tantos cuja dor não é apenas uma descarga de neurotransmissores, mas o reflexo de uma sociedade doente que valoriza o lucro sobre o cuidado, o consumo à fé. Que fecha os olhos para a doença mental e se entrega aos prazeres da vida na vitrine das redes sociais.
São os tantos que, diariamente, são devorados pelo estigma, pela solidão e pela falta de leitos.
A doença mental não é apenas química; ela é social.
É a resposta do ser humano à invisibilidade, à pobreza e ao abandono.
Vaqueirinho, o menino pobre, vítima da falta de fé na sua cura e da falha no afeto, é hoje um símbolo doloroso.
A tragédia da sua vida e morte brutal na cova dos leões nos força a olhar para a indiferença, para uma sociedade cujo dever não é esperar por um milagre bíblico, mas sim ser, nós mesmos, o anjo que estende a mão e resgata, antes que a tragédia silenciosa se torne um rugido fatal.
A fé pode mover montanhas no espírito, mas, na jaula da Bica, o silêncio dos anjos diante da morte do rapaz ecoa como um alerta sobre a fragilidade da vida humana.