Por Heverton de Freitas
Há anúncios que carregam, dentro de si, uma espécie de tristeza silenciosa.
Esta semana na Tribuna do Norte, entre o noticiário sobre a indicação do Advogado Geral da União, Jorge Messias, ao Supremo Tribunal Federal, surge o anúncio do departamento de Morfologia da UFRN: frio, objetivo, quase clínico.
“Corpo masculino. Pele preta. 57 anos. Cerca de 1m70. Cabelos brancos, barba por fazer, uma cicatriz no antebraço. Oriundo do Walfredo Gurgel.”
Ali, entre linhas burocráticas, repousa uma vida que foi grande demais para caber em tão pouco.
A pele preta vem primeiro, dita sem poesia, mas carregando o peso de séculos.
Homem preto no Brasil nunca teve vida simples.
Carrega nas costas a herança de outros nomes apagados, de outras histórias interrompidas, de outras promessas não cumpridas.
Este, agora sem nome, talvez seja mais um dos que a rua adotou quando o mundo já não o queria. É possível — quase provável — que fosse desses que dormem enrolados em papelões, que carregam nos ombros todos os ventos da madrugada, que conversam com a cidade em sussurros que ninguém ouve.
É impossível não pensar em tudo o que essa vida pode ter sido:
um pai ausente ou dedicado;
um avô que talvez nunca tenha conhecido os netos;
um trabalhador que enfrentou o sol do meio-dia;
Talvez tivesse família um dia.
Quem sabe não tenha embalado alguém no colo, contado histórias, soprado um machucado e dito “vai passar”.
Um homem não chega aos 57 anos sem deixar rastros.
Mesmo os que somem, antes de sumir, pertencem a alguém.
Pode ter tido mulher, ou amor, ou apenas encontros breves, desses que aquecem a noite, mas não resistem ao amanhecer. Pode ter amado e sido amado, ou pode ter sido mais um que amarrou seus afetos ao pouco que a vida ofereceu. Afinal, há quem viva de sobras e transforme as sobras em resistência.
Cada uma dessas possibilidades é uma história inteira e todas cabem nele.
A barba por fazer terá sido puro desleixo ou sinal dos dias difíceis?
A cicatriz no antebraço guarda uma história que nunca saberemos: um acidente de trabalho, uma briga injusta, um gesto de defesa, ou apenas o destino marcando a pele como quem assina um documento.
De que morreu?
Talvez tenha sido vítima da violência que ronda os invisíveis como um bicho faminto.
Ou talvez tenha sido só a solidão, essa espécie de morte lenta que vai cavando espaço por dentro, até que um dia o corpo desiste.
Ou o peso de carregar o mundo inteiro sem que o mundo lhe dedicasse sequer um olhar.
Porque essa é a verdade incômoda: muitos dos que morrem sem nome já viviam assim não por escolha, mas porque a cidade os esqueceu antes da morte.
E lá está ele.
Um homem inteiro, mesmo sem nome.
Um homem que respirou este mesmo ar, caminhou por estas mesmas ruas, viu os mesmos céus que hoje se abrem sobre Natal.
Nenhum ser humano deveria sair da vida assim, silencioso, quase clandestino.
Por isso este anúncio existe.
Por isso esta crônica existe.
Para que, por um instante que seja, alguém o veja.
Para que a cidade o reconheça como parte de si.
Para que seu corpo, agora sob a guarda da UFRN, não seja apenas matéria de estudo, mas memória coletiva.
Se alguém o procurar, talvez um irmão perdido, um filho que não vê há anos, um vizinho que lhe trazia café, que esta descrição seja uma trilha frágil, mas suficiente. Se ninguém vier, que ao menos fique registrada esta homenagem:
um homem viveu, caminhou entre nós, amou ou tentou amar, lutou ou apenas persistiu e não deixou o mundo completamente sem testemunha.
Não saiu do mundo sem que alguém lhe dedicasse uma palavra.
Um homem preto, de 57 anos, deixou a vida sem dizer adeus.
Mas não passou despercebido.
Será lembrado como pergunta, como possibilidade, como vida.
Porque enquanto houver quem escreva sobre ele, quem pense nele, quem lhe dedique uma linha,
ele não será apenas um corpo.
Será de novo aquilo que sempre foi:
um ser humano inteiro.
Há vidas que permanecem à beira do mundo, habitando os cantos que ninguém olha. O poeta Rabindranath Tagore escreveu: “Cada criatura é um livro vivo; basta saber ler.”
Talvez seja isso que este anúncio nos pede: que saibamos ler o que resta dele.