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Quem vela pelo Baobá?

Por Heverton de Freitas 

Nesses dias ao passar pela rua São José vi pessoalmente o que já tinha visto nos jornais. Mas assim, visto ao vivo, é ainda mais chocante a imagem que se descortina para quem desce a rua em direção ao centro da cidade. Os galhos nus do Baobá do Poeta parecem levantar os braços num pedido que ninguém escuta. A base, carcomida, lembra ossos à mostra. A Defesa Civil chegou, a serra elétrica cantou, e os especialistas começaram a retirar partes que já não se sustentavam. Dizem que é para evitar riscos. Talvez seja. Mas é também o capítulo final de uma vida vegetal que resistiu por mais de quatro séculos, mas que agora, no seu estertor, não tem quem resista por ela.

O baobá de Diógenes, como muitos chamam, está morrendo devagar. E morrer devagar, quando se é um gigante de quatro séculos, é um tipo de dignidade. Mas dignidade não é blindagem. O tronco, imenso como uma história que se conta de geração em geração, rachou por dentro. Oco. Fragilizado. Exposto como uma ferida sem curativo.

E, ainda assim, ninguém chora por ele. Não há flores deixadas aos pés, nem palavras sussurradas ao vento. Nenhuma vela acesa, nenhum protesto, nenhuma mão estendida. Do outro lado da rua, a morte sempre reúne gente, solidariedade, abraços e despedidas. Aqui, diante do baobá, só um poeta pedindo ajuda.

Diógenes da Cunha Lima, que já viu muita coisa nesta cidade, foi às redes sociais convocar biólogos, agrônomos, engenheiros, autoridades. Como se chamasse médicos para um paciente querido. “É um ser sagrado da natureza”, disse. E é mesmo. Mas a santidade das árvores não costuma comover multidões.

O baobá, esse senhor africano que atravessou mares, séculos e descuidos, inspirou lendas, ganhou versos, alimentou a suspeita romântica de ter impressionado Saint-Exupéry quando — quem sabe? — teria passado por Natal. Talvez seja mito, talvez não. Mas mitos também merecem cuidado.

Agora, um vizinho reclama que está há dias sem poder trabalhar, com o imóvel interditado. É compreensível. A cidade tem urgências, famílias têm contas a pagar. O cotidiano, às vezes, atropela a poesia sem olhar pelo retrovisor.

Enquanto isso, lá está o baobá. Morrendo em pé. Morrendo sem lamento público. Morrendo sem que as autoridades da cidade, os representantes do trade turístico, sempre tão ativos na cobrança ao poder público por incentivos de toda ordem, se mobilizem e percebam que estamos perdendo mais do que madeira. Perde-se um símbolo. Uma memória viva. Um guardião de histórias que poderia ser, como já se tentou algumas vezes, um ponto de atração em torno do mito ou da realidade da citação do baobá no Pequeno Príncipe de seu Zé Perri.

O baobá n'O Pequeno Príncipe representa os problemas que devem ser resolvidos enquanto pequenos. É um símbolo no alerta doce e severo do principezinho que arrancava, todas as manhãs, as sementes que ameaçavam seu pequeno planeta. Porque problemas — diz ele — começam pequenos, quase invisíveis, e quando crescem demais já não há como contê-los. Ironia do destino o nosso baobá está pagando o preço da disciplina que não tivemos. Não foram as raízes que romperam o mundo, mas o abandono que o deixou romper-se por dentro.

O Baobá do Poeta, carregado de lendas, memórias e suspeitas literárias, agoniza sem lágrimas, traz para a realidade o ensinamento que o escritor francês colocou no papel. Tudo o que não cuidamos a tempo — árvores, histórias, pessoas, nós mesmos — podem consumir e destruir completamente a vida de uma pessoa ou o seu mundo interior e um dia se parte.

Tantos velam alguém de um lado da rua, enquanto, do outro lado, uma árvore de quatrocentos anos se despede sozinha. Nenhum anúncio, nenhuma comoção, ainda que o grupo empresarial dono do terreno desminta os rumores de que irá transformar o terreno em estacionamento e ainda assuma que irá tentar salvar a árvore. 

A vida urbana segue com essas coisas. Às vezes, enterra-se o extraordinário para dar lugar ao útil.

Na África, o baobá é símbolo da força e ancestralidade. Aqui, na rua São José, diante do Centro de Velório, a Árvore da Vida guarda a dignidade rara de morrer em pé, enquanto passam apressados por ali os que seguem para as tarefas de sempre, ou, quem sabe, para a despedida definitiva de algum ente querido, sem notar que ali também há um adeus silencioso. O adeus de uma árvore que foi testemunha de muitas vidas.

Ainda assim, enquanto houver a menor chance de que algum especialista descubra um modo de amparar seu corpo ferido, o vento continuará rondando a velha copa destruída, porque, quando soprar, há de lembrar a todos que ainda é possível escutar, muito de perto e quase sem som, o fôlego teimoso de uma árvore que aprendeu com seus ancestrais a resistir até o último instante.

 

 


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