O primeiro documento do Papa Leão XIV, a Exortação Apostólica “Dilexi te” (“Eu te amei”), publicada no Dia de São Francisco de Assis, chega com um peso simbólico enorme. Mais do que marcar o início de um novo pontificado, o texto representa a continuidade direta do projeto do Papa Francisco — tanto que foi escrito a partir de um rascunho deixado por ele antes de morrer.
Ao decidir concluir e publicar a obra do antecessor, Leão XIV assume como própria a bandeira central do Papa anterior na defesa dos pobres e no enfrentamento às injustiças sociais. A mensagem é clara: a Igreja não vai recuar do caminho traçado por Francisco.
Ao mesmo tempo, o Papa mostra que a escolha do nome Leão XIV carrega forte simbolismo histórico. O novo Papa faz referência direta a Leão XIII, que no final do século XIX inaugurou a Doutrina Social da Igreja com a encíclica Rerum Novarum, marco da atuação da Igreja diante das desigualdades da era industrial. Ao publicar “Dilexi te”, Leão XIV atualiza esse legado para o século XXI, abordando temas como pobreza, exclusão social, crise ambiental e migração. A semelhança entre os dois pontificados indica uma linha de continuidade na defesa da justiça social como eixo central da missão da Igreja.
Em “Dilexi te”, Leão XIV fala com firmeza sobre a desigualdade e a lógica econômica que transforma pessoas em descartáveis. Ele critica o “culto ao dinheiro”, a crença cega no mercado e a ideia de que o sucesso individual é sinal de mérito ou bênção divina. “Há um sistema que enriquece poucos e empobrece muitos”, diz o texto, num tom mais direto e social do que espiritual.
O Papa também resgata um dos temas mais fortes do pontificado anterior: a defesa dos migrantes. Ele lembra que a história da fé cristã é marcada por deslocamentos — de Abraão a Jesus — e afirma que cada migrante rejeitado é o próprio Cristo sendo deixado do lado de fora.
Entre as referências espirituais que aparecem na Exortação, uma tem destaque especial para o Brasil: Santa Dulce dos Pobres, o “anjo bom da Bahia”. Citando as palavras de Francisco, Leão XIV recorda que Irmã Dulce “encarnou o Evangelho com feições brasileiras”, vivendo o amor aos marginalizados como caminho de santidade. O texto retoma a imagem marcante usada pelo Papa Francisco ao canonizá-la: “a vida religiosa é um caminho de amor nas periferias existenciais do mundo”.
Leão XIV lembra que Irmã Dulce “enfrentou a precariedade com criatividade, os obstáculos com ternura, a carência com fé inabalável”. Começou acolhendo doentes num galinheiro e dali construiu uma das maiores obras sociais do país — sempre com doçura, fé e alegria. Fez-se pobre com os pobres por amor a Cristo, exemplo de que a santidade nasce do serviço e não do conforto.
O documento tem um tom pastoral, mas com forte impacto político e social. Ao pedir uma “Igreja das Bem-aventuranças”, Leão XIV reforça que ser cristão, hoje, passa por uma escolha concreta pelos mais frágeis. “A fé sem obras é morta”, repete o texto bíblico de São Tiago, numa frase que resume bem o espírito do texto.
Em um momento em que o mundo vive tensões políticas, desigualdade crescente e migrações em massa, “Dilexi te” aparece como uma resposta moral e espiritual. É como se Leão XIV dissesse que o Evangelho continua sendo uma boa notícia — mas apenas se for boa notícia também para os pobres.
Mais do que um documento religioso, é uma mensagem de continuidade: a Igreja que Francisco sonhou — “pobre e para os pobres” — segue viva no pontificado de Leão XIV.